top of page

O genoma defeituoso de K'helyan | conto

Data: 16 de Janeiro de 2003

Localização: Cabo Canaveral, Florida

Missão: STS - 107



As pequenas janelas do cockpit limitavam a visão exterior dificultando a pilotagem. O veículo espacial dotava os mais avançados sistemas tecnológicos e, se necessário, toda a missão poderia ser pilotada apenas por instrumentos. No entanto, apesar de todos os monitores de plasma repletos de informação que tinha à sua disposição no cockpit, quando voava o Comandante John LaFame gostava de utilizar a sua visão . Sempre fora assim, desde o início da sua formação.

Respirou fundo e olhou sobre o ombro direito para o seu colega, o que exigia um esforço adicional devido ao capacete. Os seus olhos encontraram-se e, com um movimento subtil, o piloto assentiu.

— Columbia… T menos 25 — disse a voz nos auscultadores. — Sequencia de auto descolagem ativada. Funções de descolagem, voo em piloto automático. Não há erros inesperados.

John confirmou que todos os sistemas estavam em verde.

— T menos 10… 9… 8… 7…

O ruído metálico da ignição fez o coração de John acelerar.

— 6… 5… 4… motor principal ligado.

Uma forte vibração apoderou-se de todo o veículo e o barulho ensurdecedor dos foguetes em combustão provocou uma adrenalina extrema nos tripulantes. John sentiu-se dentro de uma bala prestes a ser disparada.

— 3… 2… 1… Lift Off. We have lift off… A partir de agora as comunicações passam para Houston. Godspeed Columbia.

John sentiu o seu corpo a ser esmagado contra o seu assento anatómico. A sua pulsação passava dos 220 bpm e apesar do fluxo de oxigénio estar no máximo, o visor do seu capacete embaciava a cada exalação. Queria fechar os olhos mas sabia que não podia.

— Controlo de Missão, todos os sistemas operacionais.

— Confirmado. Tanques de combustível líquido operacionais e em normal funcionamento… Potência dos motores ajustada para 67% de capacidade para entrada supersónica… Alinhamento concluído, asas niveladas para rota orbital prevista… Columbia a 3,5 milhas de altitude e a subindo… velocidade de 750 mph… Todos os sistemas estão em verde…

Os momentos da descolagem são os mais intensos de toda a missão. Os tripulantes, incluindo o comandante e o piloto, acabam por ser meros passageiros do veiculo espacial. É humanamente impossível conseguir descolar em modo manual devido à quantidade e complexidade de informação a analisar, em tão curto espaço de tempo. O cérebro humano é demasiado lento.

— 57 segundos de voo… motores ajustados para 90% de potência máxima.

John e o piloto limitavam-se a monitorizar os sistemas de voo, orientação combustão e suporte de vida, atentos a qualquer alarme que pudesse disparar.

Uma forte pancada seca sobressaiu ao ruído de fundo. Os olhos de John focaram-se nos ecrãs à sua frente. Não havia qualquer alarme ou alteração da estabilidade no Columbia.

— Ouviste, Stu? — perguntou John ao piloto.

— Sim, mas não deteto anomalias. Não há alarmes, todos os sistemas estão em verde.

— Controlo, tem alguma indicação anormal nos vossos monitores?

— Negativo, Columbia. Todos os sistemas estão em verde.

— Ouvimos um Bang. Têm referência de alguma explosão secundária nos motores?

— Negativo. Todos os sistemas estão em verde.

— Recebido.

Aquela era apenas a terceira missão espacial real de John LaFame mas as milhares de horas passadas no simulador lhe indicavam que aquele bang não devia ter acontecido e muito menos ser negligenciado. Havia que estar com atenção redobrada até acoplarem na Estação Espacial Internacional.

— Sistemas… aqui Comandante… — chamou John.

— Daqui sistemas. O que se passa John? — respondeu a especialista de missão que se sentava logo atrás do comandante.

— Jenny, vamos agendar uma inspeção estrutural assim que acoplarmos. Prioridade 5.

— Copiado, comandante. Inspeção estrutural prioridade 5.

John relaxou um pouco mais.

— 1m 47seg de voo — disse o controlo de missão. — 22 milhas de altitude, velocidade de 2600 mph…. Standby para separação dos foguetes auxiliares de impulsão… Separação de foguetes auxiliares confirmada… Orientação de voo corrigida… Piloto automático em controlo dos motores auxiliares… Convergindo rota sem desvios…

— Stu, quanto tempo até ao ponto de não retorno?

— 17 segundos, comandante. Abortamos a missão?

John ficou pensativo por uns instantes. Como qualquer comandante tinha poderes para abortar a missão; a última palavra seria sempre sua. Mas nunca por uma falha que ainda não houvera acontecido e, talvez, nunca viesse a acontecer.

— Negativo. Prosseguimos — disse ao piloto.

— Separação do tanque de combustível principal… — continuou o Controlo de Missão. — Tanque principal separado… Altitude 160 Milhas e subindo… Entraram em órbita inferior… Bom trabalho, rapazes. Missão STS - 107 está em andamento.

— Obrigado, Controlo de Missão — disse John.

— Stu… abrir comportas para arrefecimento do shuttle — continuou. — Pede um diagnóstico aos sistemas de suporte de vida. Preparar órbita elíptica para passagem a orbita B.

— De acordo, John. Contagem decrescente para primeira queima nos motores auxiliares em dez segundos.

— Prossiga com a queima auxiliar.

Momento depois, os motores dispararam. O Shuttle acelerou, saindo da sua órbita circular, começando uma órbita elíptica em direção à EEI.

— 10 segundos para o apogeu — disse o piloto. — Preparar para abrandar.

O shuttle estabilizou a sua velocidade e, lentamente entrou numa órbita muito próxima daquela onde se encontrava a estação.

— Órbita prevista alcançada. Velocidade constante de 17.000 mph. A postos e aguardando contacto com EEI em dezassete horas e trinta e dois minutos.

— Bom trabalho, Stu. Houston… confirme posição ideal para aproximação V-bar.

— 107… estão no bom caminho. Confirmo entrada em órbita B, posição otimizada para aproximação V-bar. Bom trabalho aí em cima.

— Obrigado Houston. 107 vai dar inicio aos procedimentos para alteração de modo de voo. Entrámos agora em modo “orbital”.

— Recebido 107. Space shuttle é agora veiculo orbital.

John desapertou os apertados cintos e entrou no convés inferior, onde os outros três especialistas de missão se encontravam. Começou a despir o fato de sobrevivência cor de laranja. Nunca era fácil despir o fato de voo, muito menos em órbita. O confinado espaço dos compartimentos e a falta de gravidade obrigava a ajuda mútua. Um dos especialistas - um cientista indiano que acabava de receber o batismo de voo - começou a vomitar enquanto flutuava de forma errática.

— Estás bem, Khan?

— Sim, já me passa.

John riu-se.

— Não te preocupes, na minha primeira missão espacial vomitei todo o tempo. Como prémio deram-me funções acrescidas de limpeza. Nada agradável. Anda sempre com sacos de enjoo, Khan. Não queremos suco gástrico a passear livremente junto dos painéis eletrónicos.

Khan assentiu.

Pouco mais de meia hora havia passado até todos os tripulantes estarem despidos e haverem iniciado as suas tarefas básicas de adaptação à ausência de gravidade. Stuart voltou ao flight deck e começou a rever os procedimentos para a manobra de acoplagem com a Estação Espacial Internacional, onde iriam passar as próximas dezasseis dias. John e outros três tripulantes iniciaram o seu turno de descanso. Os dias passados no espaço revelavam-se intensos e longos. Entre as múltiplas tarefas necessárias para a conclusão da missão no tempo estimado, ainda havia que encaixar tempo para exercícios físicos, potenciais atrasos e tarefas imprevistas. Sempre que o horário permitia, o descanso era obrigatório.

A missão STS - 107 consistia em unir um novo módulo à EEI - um laboratório biológico - que seria levada a cabo pelo comandante e dois dos especialistas de missão - e várias experiências de carácter científico efetuadas pelos outros quatro especialistas. Entre eles, o famoso biólogo indiano Madrash Khan.

Khan, antes de se dirigir ao seu saco de cama, perdeu uns momentos a olhar pela vigia para o planeta que acabava de abandonar. Não encontrou palavras que fossem capazes de descrever a sublime beleza que se apresentava perante os seus olhos. Apesar de ser noite, um manto rasgado de nuvens brancas cobria o tom azulado dos oceanos, escondendo as brilhantes ramificações amarelas dos grandes centros populacionais. A aurora borealis flutuava na atmosfera numa dança apática, alimentando lendas criadas pelos povos do norte e, por cima deles, algo que nunca havia imaginado: partículas de pó espacial formavam géisers de cor púrpura na parte superior do enorme manto verde. Dezenas de tempestades elétricas espalhavam-se pelo continente americano e asiático, contrastando com a serenidade da via láctea, que os observava em silêncio. Minutos depois, um azul incandescente nasceu no horizonte sobre o oceano pacífico, abafando todo aquele esplendor: o dia estava a nascer sobre o mar, o que significava que era hora de se retirar.

Khan mal conseguiu dormir.

As horas passaram em apenas alguns minutos. Foi Jenny quem o acordou. O ambiente dentro do veículo estava agitado e a cor pálida da face da especialista não indicava boas noticias.

— Khan… levanta-te. Temos uma situação.

— O que é? — perguntou o indiano ainda adormecido.

— Temos contacto no radar.

— Provavelmente é a EEI, não?

— Não. É muito cedo e a posição visual confirma que o contacto vem de outra origem.

— De outra origem? Qual origem?

— Esse é o problema. Não sabemos.

Khan saiu do seu saco de cama vertical.

— Como, não sabemos? Será um satélite perdido?

— Negativo — disse Jenny enquanto entravam no flight deck. — Não temos a certeza. O radar detetou um objeto em rota de colisão a 200 nm para estibordo.

— Um meteorito?

— Deste tamanho não. Seria detetado por Houston há dias atrás.

— Temos contacto visual? — perguntou enquanto olhava por uma das janelas do cockpit.

— Negativo.

No flight deck já estavam John e o piloto, Stu. O painel de instrumentos, apesar de silencioso, mostrava várias luzes vermelhas e amarelas intermitentes. John olhou para Khan que acabara de entrar e, aquele olhar que irradiava segurança agora apenas mostrava dúvidas e medo.

— 160 nm… 150… 140…

— O que quer que seja desloca-se a grande velocidade — disse Stu.

— Já devemos ter uma leitura clara do objeto.

— Negativo — disse Jenny enquanto olhava pela janela. — Não há nada lá fora.

Khan também não viu nada.

— Impossível — disse John. — Houston tem alguma resposta para isto, Stu?

— Não sei. Tenho tentado entrar em contacto com o centro do Havai mas não recebo qualquer resposta.

— Tenta a frequência do centro de Sidney.

— Já tentei. Também não há resposta. Parece que estamos mudos.

— Faz um radio check com a EEI. Pode ser que seja uma anomalia no rádio. Jenny e Khan, tomem os vossos lugares e apertem os cintos. Não tirem os olhos da janela.

Para quê apertar os cintos? pensou Khan. Se houver algum objeto que colida com o shuttle em pleno espaço, e àquela velocidade, não restará ninguém para contar a história. Porém, obedeceu sem hesitar.

— 90 nm… 80… 70…

— Preparar para evasão de emergência. Abrandar e baixar para órbita improvisada C em nível inferior. Preparar para queima.

— 60 nm… 50… 40…

— John não vamos ter tempo para mudarmos de órbita. Se for para C superior teremos melhores hipóteses; mas será muito difícil.

— Se apontarmos para uma rota superior e colidirmos com o objeto, seremos projetados fora de órbita e sem controlo.

— Se aquilo nos atingir, morreremos de qualquer forma, John.

— Não no meu turno. Preparar para potência máxima nos motores principais.

— 30 nm… 20… — contava Khan de acordo com os números do ecrã digital.

— Ignição em 3… 2… 1…

De repente, os todos os ecrãs e luzes do painel de instrumentos foram abaixo, ficando o cockpit inundado de escuridão.

— Mas o que se passa? — perguntou Stu.

— Preparem-se para impacto — gritou o comandante.

Todos os tripulantes cruzaram os braços por cima do peito e esperaram um violento impacto.

Nada aconteceu.

Jenny abriu os olhos e olhou para fora da janela. Não havia ali nada. Era impossível. Pouco a pouco, todos olharam lá para fora confirmando o diagnóstico da especialista.

— Mas que…? Stu, conseguiste contactar com a EEI?

— Negativo, John. Os rádios estão apagados… como tudo o resto.

— Mas que merda é esta? — perguntou Khan, nervoso.

Ninguém respondeu.

— Pode ser um campo de força — respondeu Jenny. — Pode ter provocado uma sobrecarga no sistema. Daí o blackout.

— Porque continuamos sem energia? O sistema de emergência já devia estar ativo.

— Glenn? — Chamou John para o deck inferior.

— Sim, comandante?

— Faz um diagnóstico manual aos sistemas elétricos e verifica por que razão não temos energia.

— Em seguida, John.

— Procura saber se o sistema de regeneração de oxigénio está ativo e a funcionar. Informa-me assim que saibas.

— De acordo.

— John? — perguntou Madrash. — Temos algum procedimento para este tipo de situações?

— Sim, sobrevivermos. Alguém tem ideias?

Fez-se um silêncio.

— Poderemos fazer um reset às baterias. Se não funcionar, restabelecemos uma das células de combustível para o sistema de suporte de vida secundário e provocamos uma ligeira sobrecarga. Isso deve acordar o sistema.

— É uma boa ideia, John. Se não resultar poderemos tentar utilizar as baterias de reserva do novo módulo…

— Hei, rapazes… — interrompeu Jenny.

— Poderá funcionar para o sistema de suporte de vida mas nunca conseguiremos meter este pássaro a voar com essas baterias. Muito menos reentrar na atmosfera…

— Correto, no entanto, se em simultâneo fizermos uma puxada de …

— Hei, rapazes! — insistiu Jenny, com um grito. — Há algo lá fora…

Fez-se outro pesado silêncio.

— Ali mesmo, por cima da asa direita. É difícil de ver… parece que está protegido por um camuflado transparente.

— O quê? — disse Stu enquanto procurava. — Como é isso possível?

— Não sei, mas sei que anda algo ali.

— Já vi — disse John. — Parece uma esfera transparente embora mais opaca. Está mesmo ali, às duas horas, a cerca de uma milha. É enorme.

— John, o sistema de suporte à vida a bordo está operacional. Oxigénio a 89%; filtro de CO2 a 96%. Mas tudo o resto parece estar desligado.

— Não pode ser… Tens a certeza, Glenn?

— Sim, John. Também não há indícios de curto-circuito.

— Como é isso possível? Não é possível separar o sistema de emergência — disse Jenny. — Todas as funções primárias deviam estar ativas.

— Exceto se houver uma falha múltipla. Talvez de software…

— Seria a primeira vez que isso acontecia — respondeu John. — É altamente improvável.

— Glenn, faz um diagnóstico geral do Columbia. Quero saber exatamente que sistemas estão ativos.

— Será que tem alguma coisa a ver com o campo de força? — perguntou Khan.

— Não faz sentido. Se fosse uma anomalia geral todos os sistemas teriam de estar em baixa.

— E se não for um campo de força?

Todos olharam para Khan.

— O que sugeres?

— Não sei. Estou tão baralhado quanto vocês.

— Vá lá, Khan. Não disperses. Mantém-te focado.

— A sério, John. Repara: um objeto estranho aproxima-se a grande velocidade e de repente pára ao nosso lado. Nesse instante todos os sistemas vão abaixo, exceto os de suporte de vida. Que objeto é este? De onde veio? Não pode ser coincidência…

— Estás a sugerir que isto é um contacto extraterrestre? — perguntou Stu.

Todos cruzaram olhares. Ninguém sabia o que pensar. A eterna pergunta será que estamos sozinhos? é uma pergunta que todos os astronautas têm bem presente na cabeça mas que, verdadeiramente, não querem saber da resposta. Muito menos quando estão em órbita.

As quatro cabeças colaram-se à janela a olhar para a esfera.

— O que se passa aí em cima? — ouviu-se uma voz que vinha do deck inferior, onde estavam os restantes três tripulantes.

— Não sabemos. Temos uma falha na eletrónica e tentamos resolver o problema. Mantenham-se alerta para qualquer aviso de emergência que possa surgir — respondeu John.

Khan olhou para John.

— Vamos tentar não criar o pânico a bordo com especulações, entendido?

— John… — chamou Glenn. — Todos os sistemas estão em baixo: navegação, controlo, orientação, comunicação, mecânica, carga, voo e laboratório. Confirma-se que os únicos ativos são os de suporte de vida básica.

— Temos de fazer algo e rápido — disse Stu. — Não podemos ficar assim.

— Consegues ver a EEI?

— Sim, a uma milha adiante a 002º.

— Status?

Stu agarrou nos binóculos.

— Pelo menos tem energia. Tudo aparenta estar normal.

— Temos de lhes pedir ajuda.

— E.V.A.?

— Com aquilo lá fora?

— Algum voluntário? — insistiu John.

Ninguém respondeu mas todos se observaram.

— Eu posso ir dar uma volta ao quarteirão — disse por fim, Khan. — Preciso de ar puro.

— Estás seguro disso?

— Não. Mas é a escolha lógica. Sou o único que não tem funções prioritárias ou vitais para o sucesso da missão. Além disso sou biólogo. Se houver outra forma de vida, quero ser o primeiro a saber.

— Alguém se opõe? — perguntou o comandante.

Houve um silêncio.

— Está decidido. Khan irá em voo autónomo até à EEI.

— Vamos lá preparar o E.M.U. — disse Stu, levantando-se do lugar.

— Eu ajudo-te — disse Jenny.

Khan estava bem familiarizado com o fato espacial e com o M.M.U., a unidade de propulsão autónoma utilizado pela NASA. Apesar de nunca ter feito um passeio espacial, levava centenas de horas de treino no simulador e na piscina do Johnson Space Center, no Texas. No entanto estava por si só e não sabia se iria ser bem sucedido na sua pequena missão. Era um passeio difícil, que nunca tinha sido tentado e todas as probabilidades estavam contra ele. Pela distância a percorrer, pela falta de comunicação com o shuttle ou com a EEI e pela sua exposição prolongada no espaço. Mas o pior foi as vertigens que sentiu quando se afastou do veiculo. Só uma vez havia sentido o mesmo, quando foi projetado borda fora do veleiro do seu pai, em mar alto. O coração acelerado, os olhos pesados e a falta de ar apoderaram-se dele como um predador esfomeado. Nunca se sentiu tão só. Focou-se no ponto branco que tinha à sua frente, o seu destino, e só desviou o olhar para contemplar o enorme planeta azul e branco que estava ao seu lado. Meu deus, que vista maravilhosa! E que grande era a terra! Começou-se a rir e por reflexo tentou limpar uma lágrima de emoção que lhe escorria da face, batendo com a luva no visor do capacete. Sentiu-se parvo. Agora não era tempo para lamechices. Focou-se na sua tarefa e seguiu caminho.

Se tivesse olhado para o outro lado, para o vazio do espaço, iria ver que algo tinha mudado na esfera. Já não era transparente. Era prateada e o seu interior movia-se como se fosse feita de líquido. Quando um movimento estranho chamou a sua atenção, já era tarde demais. Um longo “braço” da substância prateada - que lhe fez lembrar mercúrio - ia em sua direção. Entrou em pânico e sentiu-se a desmaiar enquanto era envolvido por aquela substância gélida.

Acordou em sobressalto. À sua frente estava um enorme campo verde que serpenteava entre bunkers de areia branca. Ficou confuso. Estava vestido com umas calças de xadrez, um polo de manga curta e sapatos com franjinhas. Na sua mão levava um taco de golfe. Golfe? Mas que raio se passava? O vento fresco despenteava o seu fino cabelo negro e o céu estava azul, como num dia de verão. Embora estivesse em pé no campo, sentia que debaixo dos seus pés não havia terra ou relva. Não conseguia explicar. E mais confuso ficou quando viu passar Jenny ao seu lado, no meio da cidade, atravessando de um arranha céus para outro, equilibrando-se em cima de um cabo. A Jenny, malabarista? Do outro lado estava John em casa, sentado no sofá a brincar com os seus dois filhos e, atrás de si, Stu preparava-se para um mergulho de alta profundidade, no mar do norte. Glenn ficava-se por uma cama em forma de coração com quatro mulheres despidas em cima dele. Uma delas tinha um chicote na mão.

O que me está a acontecer? interrogou-se Khan. Sem dúvida que era uma ilusão pois nada daquilo era real mas… onde? Dentro da esfera? Começou a correr em direção ao horizonte e percebeu que não tinha fim. Podia continuar a correr sem chegar a lado nenhum. Não fosse o eco produzido pelos seus passos, ser-lhe-ia difícil acreditar que não estava em campo aberto. A visão do campo lembrou-o do seu vizinho, o gordo de cabelo seboso que não perdia oportunidade de fazer olhinhos à sua mulher. Tinha uma desforra marcada com ele no campo de Pine Hills que não podia adiar mais. Ajoelhou-se. A relva tinha consistência de relva e estava fresca.

— Incrível, não é? — disse uma voz familiar.

Levantou-se e viu ao longe uma figura humana que se dirigia a ele. Parecia um adulto. Vestia um fato creme sujo de ketchup e uma gravata de riscas verdes. A voz e a figura eram terrivelmente familiares. À medida que a figura se aproximava, Khan reconheceu-o. Era Ned, o seu vizinho peganhento.

— Ned… Que fazes aqui?

Ele sorriu carinhosamente. Não foi uma visão que impressionasse Khan.

— Ned… onde estamos?

Ned olhou para baixo. Khan também olhou e viu o planeta amplificado a seus pés.

— Mas… — disse começando a cair na realidade e sentido o pânico a apoderar-se.

— Não tenhas receio, Chamuça.

— Ned, pára de me chamar isso. — Khan, percebeu que tudo aquilo era uma ilusão. Aquele ser, obviamente, não era Ned. — Quem és tu? Onde está Ned?

A figura olhou novamente para baixo. A cidade de Newport apareceu a seus pés. Khan viu a casa de Ned e, encostado à cerca, estava o vizinho, a espreitar para dentro de sua casa.

Khan fechou os olhos, respirou fundo e abanou a cabeça lentamente, tentando dominar a sua raiva e incompreensão daquela visão.

— Porque estás com a fisionomia de Ned?

— Porque é mais fácil comunicar contigo assim. Usámos as tuas recordações para fabricar uma imagem com que te identificasses. A nossa forma original é bem diferente. Não irias gostar de ver.

— Qualquer forma é melhor que a de Ned. Além disso, não concebo a ideia de ser raptado por extraterrestres e não conhecer a sua fisionomia.

A figura sorriu e voltou à sua fisionomia original.

— Um gato? — perguntou perplexo.

— Surpreendido? Chamo-me K’helyan e represento o departamento de células vivas.

— Chamo-me Madrash Khan, perito em biologia.

— Nós sabemos.

— Vocês são parecidos com os comuns gatos que habitam a terra? — perguntou ainda confuso.

— Não, nós somos os gatos que habitam a vossa terra. E não há nada comum em nós, posso-te assegurar. Deste modo conseguimos observar-vos de perto sem que notem a nossa presença.

— Mas porquê?

— Somos velhos amigos do teu povo. Os primeiros, por acaso. A nossa existência é muito anterior à formação do vosso planeta. De facto, fomos nós que criámos o vosso mundo e a vossa raça.

— Foram vocês que nos criaram?

K’helyan assentiu.

— Fui eu na realidade. Ideia minha.

— Desculpa?

— Foi uma experiência. Um tira teimas, como vocês lhe chamam. Eu e o meu colega de laboratório tínhamos dúvidas relativamente à composição do genoma humano. Para compreender quem estava correto, criámos dois mundos iguais, com seres quase idênticos. Apenas com uma diferença mínima no ADN.

— Que dizes? Existe outro planeta igual à terra?

— Existiu. Hoje é um mundo completamente diferente. Muito mais evoluído que o vosso, sem comparação possível. Infelizmente o meu colega tinha razão quanto ao genoma. Era eu que estava errado.

— Errado? Quanto à nossa criação?

— Sim. Vocês saíram defeituosos.

— Defeituosos?

— Um erro menor, a nível comportamental.

Khan estava confuso.

— Olha para o vosso mundo. Já pouco se aproveita do planeta originalmente criado. E ainda se encontram tão longe das nossas previsões.

— Quais previsões?

— Prosperidade e evolução benigna. Ao contrário do vosso mundo gémeo, vocês evoluíram no sentido errado: caminham para a autodestruição e não para a preservação, como foram programados. Existe um claro defeito no vosso ADN. O que não esperávamos era que uma diferença tão ínfima pudesse causar resultados tão díspares.

— Mas nós ainda estamos em processo de aprendizagem, a nossa evolução ainda é jovem e, seguramente, encontraremos soluções que nos permitam retificar os nossos erros.

— Já não há tempo, Madrash. A única saída é voltar a dar um empurrãozinho à vossa evolução.

— Um empurrão na nossa evolução?

— Sim. Devido ao vosso “pequeno problema”, fomos obrigados a interferir na vossa evolução, várias vezes.

— Interferirem na nossa evolução? O que me estás a dizer?

— A evolução de um povo nunca é fácil, não penses que é um problema exclusivamente vosso. Pode ser lenta e, tal como no vosso caso, pode não seguir o percurso que foi traçado originalmente. Muitas vezes há desvios no caminho que dão origem a outros caminhos que acabam em outros destinos. Nós retificamos esse desvio, dando uma pequena ajuda a pessoas específicas, que influenciam o vosso povo, levando-os de volta ao caminho que vos foi traçado.

— Esclarece-me, porque tudo isto é demasiado para mim.

— As regras da vossa existência são as regras básicas da evolução de qualquer povo em qualquer planeta: Existência, Conhecimento e Procriação. Apesar de terem sido criados por nós, o caminho da vossa evolução é traçado por vós próprios. E no vosso caso são caminhos atribulados. Tivemos que intervir demasiadas vezes no passado, em tão pouco tempo de existência. Nunca antes aconteceu. Outra manifestação do vosso defeito genético é a falta de atenção ao que vos rodeia. Sabes porque se passou tanto tempo entre a descoberta da forma quadrada e a aplicação diária da forma circular nas vossas vidas? Porque durante séculos do vosso tempo ninguém se lembrou de algo tão simples como cortar os cantos ao quadrado. Tivemos que ser nós a mostrar-lhes.

— Vocês descobriram a roda?

— Não, vocês descobriram a roda. Nós apenas os impulsionámos nesse sentido.

— Mas isso não faz sentido. Olha para nós há cem anos atrás e olha para nós agora. Vocês encontraram-me e aos meus colegas no espaço. Houve uma enorme evolução. De facto, nunca houve uma evolução tão rápida como nestes últimos cinquenta anos. Como explicas…

K’helyan sorriu novamente.

— Foram vocês?

O gato assentiu.

— Nós, como vossos criadores, sentimo-nos um pouco responsáveis pela asneira que fizemos assim que, de tempos em tempos, damos-vos umas dicas.

— Por curiosidade, quem foram os sujeitos que já visitaram?

— Adão, Jesus, Nostradamus, Galileu, Da Vinci, Newton, Einstein, Edison, entre muitos outros.

— Jesus? Adão? Mas vocês acreditam na religião?

O gato riu-se outra vez.

— Não, mas vocês sim. É um aspeto fundamental da vossa existência, acreditarem numa força superior que vos traga esperança. Jesus foi fundamental para manter a ordem social.

— E Adão?

— Se não houvesse discórdia, não havia evolução. É tão importante criar regras como quebrá-las.

— E agora visitam-me a mim… porquê eu?

— Tu és biólogo e melhor que ninguém compreendes o que falamos. É preciso mudar as coisas rapidamente. Já fizeste grandes progressos no teu trabalho em descodificar o genoma humano. Agora, com a nossa ajuda, tens de acabá-lo.

— Querem que eu, sozinho, mude o mundo…?

— Não queremos que mudes o mundo. Apenas queremos-te oferecer um conhecimento superior na tua área de especialização, para que possas fazer novas descobertas e retificar o nosso erro, de forma subtil e aceite por todos os humanos. Não é viável estarmos sempre a vir em vosso auxílio. A partir de agora, têm de evoluir por vocês próprios e evitar a vossa destruição. A única maneira de conseguirem isso é através da retificação do genoma humano. Através de ti.

— Não sei o que dizer.

— Não digas nada, não tens alternativa.

— E como justificarei o que aconteceu aqui, junto dos meus colegas de missão?

— Também eles estão a ter a mesma experiência que tu. Cada um de vocês irá levar conhecimento superior de volta ao vosso mundo, em diferentes áreas: física, matemática, biologia, destreza motora, valores sociais, amor e resolução de conflitos. Isso será suficiente para vos levar de volta ao caminho certo.

— E como é suposto eu adquirir esse conhecimento?

K’helyan deitou-se de patas para o ar.

— Faz-me festas na barriga.

Khan tocou-lhe no pelo e, de imediato, sentiu uma força a trespassar-lhe o corpo. A sua mente foi sobrecarregada com informação genética e biológica sobre todos os seres vivos existentes. A sua compreensão sobre o funcionamento do corpo humano - e de qualquer outro na verdade - passou a ser vasto e coerente. Tudo na sua cabeça fazia sentido, de uma forma clara e lógica, como nunca antes tinha sentido. Sentia-se leve, despreocupado, eufórico inclusive.

— Isto é espantoso! Tudo faz sentido!

O gato riu pela última vez.

— Voltaremos a ver-nos?

— Nos próximos cinco mil anos não voltaremos cá.

O gato deu meia volta e começou a afastar-se de Khan, em direção ao horizonte.

— K’helyan…? Porquê o campo de golfe?

— Não é o que mais gostas de fazer?

Khan riu-se.

Pouco a pouco aquela ilusão foi-se desvanecendo até Khan ser engolido pela escuridão. Quando se despertou, estava sentado na sua cadeira do Shuttle, dentro do seu fato de sobrevivência cor de laranja. Todos os restantes tripulantes estavam lá, com a mesma cara confusa que ele levava. O painel de instrumentos voltou a ganhar vida e todas as funções do shuttle ficaram, novamente, operacionais. Parecia que toda aquela experiência nunca tinha acontecido.

— O que é que nos acabou de acontecer? — ouviu-se uma voz vinda do deck inferior.

— Estão todos bem? — perguntou o comandante John LaFame.

Todos olharam uns para os outros. Uns estavam esquálidos, outros tremiam.

— Senhores — disse John. — Acabámos de ter a experiência das nossas vidas. Temos um papel importante a desempenhar na história do nosso mundo. Podemos mudar o curso da história.

— O que fazemos John? — perguntou Stu.

— Aquilo que viemos cá fazer. Contrariamente às funções e responsabilidades de um comandante, sugiro uma votação: abortamos a missão ou seguimos como se o nosso encontro nunca tivesse acontecido. Concordam?

Todas assentiram.

— A favor de abortar a missão e voltar à terra?

Os sete elementos da tripulação levantaram um braço e disseram Aye.

— Por unanimidade de todos os tripulantes, declaro estado de emergência e finalização da missão STS - 107.

— Queres que notifique o centro de controlo? — perguntou Stu.

— Não, essa é uma tarefa minha. Obrigado. Começar preparativos para reentrada.

De imediato todos os tripulantes começaram com os seus afazeres.

— Houston… daqui 107.

— Onde raio estiveram vocês, 107? Desapareceram por quatro horas. Estávamos preocupados.

— Houston… declaramos emergência a bordo. Missão abortada… repito… missão abortada.

— Qual é o problema? Perdemos contacto com os sistemas de bordo mas já os recuperámos. Todos os sistemas estão operacionais. Não vemos razão para abortar.

— Houston… fomos expostos a um qualquer tipo de radiação espacial. Não sabemos quais as consequências a curto prazo, que possam comprometer a integridade da tripulação ou da missão. Peço procedimento de reentrada imediata.

— Afirmativo — disse a voz depois de uns minutos. — Emergência a bordo declarada. Mantenham-se em standby para reentrada.

Quarenta e três minutos depois, o Columbia estava pronto para reentrar na atmosfera terrestre. No nariz do aparelho, já se viam os rasto de plasma do primeiro contacto do shuttle com a atmosfera e começavam-se a ouvir os estrondos habituais.

— John — chamou Jenny. — Não chegámos a fazer o diagnóstico estrutural, para procurar possíveis danos causados pela descolagem.

— Agora é tarde demais, Jenny. Já não conseguimos sair daqui. Vemos isso quando aterrarmos.

— John… Tenho um sensor de temperatura da asa esquerda que indica 1600º C.

— Tens a certeza?

— Afirmativo.

— John, a pressão hidráulica de quatro sensores da asa esquerda caíram.

— Estamos com pressão zero ou abaixo do nível?

— Abaixo do nível.

— Ok.

— John… Perdi a leitura de quatro sensores de temperatura na asa esquerda.

— Localização?

— Na parte traseira da asa, junto ao trem de aterragem.

— Ok. Tudo o resto está em verde e dentro dos parâmetros normais. Deve ser um erro de computador.

John olhou para Stu com um olhar profundo.

Momentos depois, a vista das janelas era apenas um incandescente rasto laranja e amarelado. A temperatura exterior indicava 2.200º C. Começava-se a sentir as primeiras forças G’s.

— Tripulação… pressurizar fatos e baixar os visores. — ordenou John, pela última vez.


Durante a descolagem, um pedaço de revestimento do tanque principal soltou-se e perfurou a entrada da asa esquerda. Este buraco não foi detetado pelos tripulantes.

As forças gravitacionais da reentrada provocaram com que as altas temperaturas penetrassem na asa esquerda do Columbia, desintegrando-a aos poucos.

O Columbia não resistiu à reentrada. Todos os seus ocupantes foram mortos instantaneamente.




bottom of page